Desde 1905 o escritor brasileiro João do Rio falava em ‘flanar’ pela cidade’. Quase 100 anos depois, o sentido de ‘flanar’ foi ressignificado, mas também trouxe um novo olhar de como podemos nos relacionar com nossa cidade. ‘Flanar’ hoje é um convite à caminhar, esbarrar, reconhecer e aprofundar-se na experiência urbana. Vivemos mesmo é na cidade, nos relacionamos com ela o dia todo, todos os dias.
“Em sua origem, a rua não era apenas uma via de acesso a um local e, sim, o próprio local. Um espaço de convivência para se estar, passar o tempo, interagir com outras pessoas. Na segunda metade do século XX o planejamento urbano focou em infraestrutura para a circulação eficiente de veículos motorizados. Tal modelo tem sido questionado já há algumas décadas, por autores como Jane Jacobs e Jan Gehl, cujos trabalhos pioneiros valorizaram o pedestre e a vida urbana”, contextualiza Danielle Hoppe, gerente de Transportes Ativos e Gestão da Demanda por Viagens do ITDP Brasil.
Na virada do século XXI, líderes visionários têm realizado transformações urbanas em diversas cidades do mundo, como Copenhagen, New York, Madrid, Paris, México e Buenos Aires. Em alguns lugares, a ‘pedestrianização’ temporária de distritos urbanos inteiros também tem sido realizada com o propósito de transformar as percepções de residentes sobre suas cidades.
A grande liberdade de movimento é um traço marcante do deslocamento dos pedestres: podem trocar de direção instantaneamente, movendo-se também para o lado e para trás. Seu deslocamento envolve ainda esforço físico e contato direto com o entorno. Sua baixa velocidade – 1,2m/s em média – acentua a interação com o espaço urbano que o circunda, fazendo com que detalhes quase imperceptíveis tenham um impacto significativo para quem está caminhando. “O alto percentual de viagens feitas a pé nas cidade brasileiras comprova a importância de planejar as nossas cidades também para os pedestres”, explica Danielle Hoppe.
De acordo com a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), 36% da população se desloca a pé até os seus destinos nas cidades brasileiras, enquanto 31% utiliza o transporte individual motorizado e 29%, o transporte público. “Consequentemente, uma parcela muito significativa dos usuários de transporte público acessam pontos e estações de transporte público a pé”, ressalta Danielle Hoppe.
Por isso, o ITDP Brasil e o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH), com a colaboração da Publica Arquitetos, fizeram uma parceria para avaliar as condições dos espaços públicos para os pedestres e monitorar o impacto de ações de requalificação, entendendo em que medida favorecem (ou não) os deslocamentos a pé.
Fruto principal desse trabalho foi o Índice de Caminhabilidade. Seis categorias, cada uma incorporando uma dimensão da experiência do caminhar, agrupam 21 indicadores diferentes. “O conceito de caminhabilidade (walkability em inglês) foca nas características do ambiente urbano que favorecem os deslocamentos a pé, e pode compreender desde as condições e dimensões das calçadas e cruzamentos, à atratividade e densidade da vizinhança, à percepção de segurança pública e até condições de segurança viária”, define Danielle Hoppe.
“O Índice de Caminhabilidade propõe uma visão integrada desses fatores, ajudando a identificar pontos positivos e negativos de uma área determinada e colaborando para a priorização de ações que estimulem a utilização da rua por pedestres”, explica Washington Fajardo, presidente do IRPH e assessor especial do Prefeito para assuntos urbanos.
Uma das nove áreas de atuação do Programa Centro para Todos, no centro do Rio de Janeiro (chamada Área Praça Tiradentes), foi utilizada como piloto para o desenvolvimento dos indicadores que compõem o Índice. “O Programa Centro para Todos tem como proposta principal reestruturar o espaço da região central da cidade, beneficiando-se do ímpeto criado pelas diversas iniciativas de revitalização desta área, tais como a implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), recuperação do conjunto arquitetônico tombado, atração de setores da indústria criativa, requalificação dos espaços públicos”, reforça Fajardo.
Os indicadores foram construídos a partir de uma reflexão sobre características concretas do espaço urbano de uma cidade específica: nesse caso, a cidade do Rio de Janeiro. “Assim, ao mesmo tempo que a metodologia estava sendo concebida e testada no Rio, buscamos avaliar seu potencial de aplicação em outras cidades”, esclarece Danielle Hoppe, ressaltando que sua aplicação em outros contextos exige uma avaliação da adequação dos indicadores e da graduação dos parâmetros utilizados.
A publicação é apresentada em dois volumes: Índice de Caminhabilidade – Ferramenta, que apresenta a metodologia de avaliação, e Índice de Caminhabilidade – Aplicação Piloto, com os resultados da aplicação piloto no entorno da Praça Tiradentes, no centro do Rio.
A última seção do volume Índice de Caminhabilidade – Aplicação Piloto traz recomendações gerais para a área analisada, além de orientações para as ruas específicas com sugestões de possíveis alterações a partir do cruzamento dos resultados de indicadores distintos..
“Dentre as intervenções prioritárias estão as de segurança viária, categoria que obteve a menor pontuação. Travessias são zonas de conflito entre vários usuários. É essencial que sejam desenhadas de forma que os mais vulneráveis, os pedestres, estejam protegidos”, destaca Danielle Hoppe.